Fernando Pessoa era Antiproibicionista 
Data de publicação: 1/7/2004
 
Por: admin  

Fernando Pessoa era um Antiproibicionista

Em sua Obras em Prosas, editados em português pela Editora Nova Aguilar, estão reunidos diversos ensaios de Fernando Pessoa sob o título Teoria e Prática do Comércio. Em um deles, As Algemas, o eminente poeta fala sobre legislação restritiva ou proibicionista, que ele divide em cinco aspectos. O terceiro desses aspectos é "a legislação restritiva que pretende beneficiar o consumidor individual: é a que proíbe ou cerceia a venda de determinados artigos -- desde a cocaína às bebidas alcoólicas -- por o seu uso, ou fácil abuso, ser nocivo ao indivíduo".

Só mesmo os incansáveis pesquisadores da Psicotropicus para descobrirem essa verdade estampada nas páginas 636-38: Fernando Pessoa, o poeta maior da língua portuguesa, era um fervoroso antiproibicionista. Leia abaixo.

       "Chegamos ao ponto cômico desta travessia legislativa. Chegamos ao exame daquela legislação restritiva que visa a beneficiar o indivíduo, impedindo que ele faça mal à sua preciosa saúde moral e física. É este o caso de legislação restritiva que se acha tipicamente exemplificado no diploma que é o exemplo máximo de toda a legislação restritiva, quer quanto à sua natureza quer quanto aos seus efeitos – a famosa Lei Seca dos Estados Unidos da América.Vejamos em que deu a operação dessa lei.

Não colhemos ao caso social; tratá-lo não está na índole desta Revista, nem, portanto, na deste artigo. Não consideremos o que há de deprimente e de ignóbil na circunstância de se prescrever a um adulto, a um homem, o que há de beber e o que não há de beber; de lhe pôr açaimo, como a um cão, ou colete-de-força, como a um doido. Nem consideremos que, indo por esse caminho, não há lugar certo onde logicamente se deva parar: se o Estado nos indica o que havemos de beber, porque não decretar o que havemos de comer, de vestir, de fazer? porque não prescrever onde havemos de morar, com quem havemos de casar ou não casar, com quem havemos de dar-nos ou não dar-nos? Todas essas coisas têm importância para a nossa saúde física e moral; e se o Estado se dispõe a ser médico, tutor e ama para uma delas, porque razão se não disporá a sê-lo para todas?

Não olhemos, também, a que este interesse paternal é exercido pelo Estado, e que o Estado não é uma entidade abstrata, mas se manifesta através de ministros, burocratas e fiscais-homens, ao que parece, e nossos semelhantes, e incompetentes portanto do ponto de vista moral, senão de todos os pontos de vista, para exercer sobre nós qualquer vigilância ou tutela em que sintamos uma autoridade plausível. Não olhemos a isto tudo, que indigna e repugna; olhemos só às conseqüências rigorosamente materiais da Lei Seca. Quais foram elas? Foram três:

1- Dada a criação necessária, para o “cumprimento” da Lei, de vastas legiões de fiscais – mal pagos, como quase sempre são os funcionários do Estado, relativamente ao meio em que vivem -, a fácil corruptibilidade desses elementos, neste caso tão solicitados, tornou a Lei nula e inexistente para as pessoas de dinheiro, ou para as dispostas a gastá-lo. Assim esta lei dum país democrático é, na verdade, restritiva apenas para as classes menos abastadas e, particularmente, para os mais poupados e mais sóbrios dentro delas. Não há lei socialmente mais imoral que uma que produz estes resultados. Temos, pois, como primeira conseqüência da lei seca, o acréscimo de corruptibilidade dos funcionários do Estado, e, ao mesmo tempo, o dos privilégios dos ricos sobre os pobres, e dos que gastam facilmente sobre os que poupam.

2- Paralelamente a esta larga corrupção dos fiscais do Estado, pagos, quando não para diretamente fornecer bebidas alcoólicas pelo menos para as não ver fornecer, estabeleceu-se, adentro do Estado propriamente dito, um segundo Estado, de contrabandistas, uma organização extensíssima, coordenada e disciplinada, com serviços complexos perfeitamente distribuídos, destinada à técnica variada da violação da Lei. Ficou definitivamente criado e organizado o comércio ilegal de bebidas alcoólicas. E dá-se o caso, maravilhoso de ironia, de serem estes elementos contrabandistas que energicamente se opõem à revogação da Lei Seca, pois que é dela que vivem. Afirma-se, mesmo, que, dada a poderosa influência, eleitoral e social, do Estado dos Contrabandistas, não poderá ser revogada com facilidade essa lei. Temos, pois, como segunda conseqüência da Lei Seca, a substituição do comércio normal e honesto por um comércio anormal e desonesto, com a agravante de este, por ter que assumir uma organização poderosa para poder exercer-se, se tornar um segundo Estado, anti-social, dentro do próprio Estado. E, como derivante desta segunda conseqüência, temos, é claro, o prejuízo do Estado, pois não é de supor que ele cobre impostos aos contrabandistas.

3- Quais foram, porém, as conseqüências da Lei Seca quanto aos fins que diretamente visava? Já vimos que quem tem dinheiro, seja ou não alcoólico, continua a beber o que quiser. É igualmente evidente que quem tem pouco dinheiro, e é alcoólico, bebe da mesma maneira e gasta mais – Isto é, prejudica-se fisicamente do mesmo modo, e financeiramente mais. Há ainda os casos, tragicamente numerosos, dos alcoólicos que, não podendo por qualquer razão obter bebidas alcoólicas normais, passaram a ingerir espantosos sucedâneos – loções de cabelo, por exemplo, com resultados pouco moralizadores para a própria saúde. Surgiram também no mercado americano várias drogas não alcoólicas, mas ainda mais prejudiciais que o álcool; essas livremente vendidas, pois, se é certo que arruínam a saúde, arruínam-na contudo adentro da lei, e sem álcool. E o fato é que, segundo informação recente de fonte boa e autorizada, se bebe mais nos Estados Unidos depois da Lei Seca do que anteriormente se bebia. Conceda-se, porém, aos que votaram e defendem este magno diploma que numa seção do público ele produziu resultados benéficos – aqueles resultados que eles apontam no acréscimo de depósitos nos bancos populares e caixas econômicas. Essa seção do público, composta de indivíduos trabalhadores, poupados e pouco alcoólicos, não podendo, com efeito, beber qualquer coisa alcoólica sem correr vários riscos e pagar muito dinheiro, passou, visto não ser dada freneticamente ao álcool, a abster-se dele, poupando assim dinheiro. Isto, sim, conseguiram os legisladores americanos – “moralizar” quem não precisava ser moralizado. Temos, pois, como última conseqüência da Lei Seca, um efeito escusado e inútil sobre uma parte da população, um efeito nulo sobre outra, e um efeito daninho e prejudicial sobre uma terceira.


A Lei Seca, é certo, é um caso extremo. Mas um caso extremo é como que um caso típico visto ao microscópio: revela flagrantemente as falhas e as irregularidades dele. O caso da Lei Seca é extremo por duas razões – porque a Lei Seca é uma lei absolutamente radical, e porque, principalmente em virtude disso, o Estado se viu obrigado a esforçar-se para que ela efetivamente se cumprisse. As leis menos radicais desta ordem – como, entre nós, a que pretendeu restringir as horas de consumo das bebidas alcoólicas – naufragam na reação surda e insistente do público, que as desdenha e despreza, e no desleixo de fiscalização do próprio Estado. Nascem mortas; e, como no caso dos monstros, o melhor é que assim aconteça, pois, se vivem, vivem a vida inútil e daninha da Lei Seca dos Estados Unidos."